ou, "quase nada"Mais um dia que acaba. Mais um que se esfuma e apaga ao passar pelos meus dedos.
Invariavelmente, vasculho as cinzas da memória com os olhos postos no cinzeiro.
É nele que projecto os meus últimos minutos de cada dia. Sei que existem melhores telas na minha sala mas já concluí que no meu caso o tabaco, para além do óbvio vício de pulmão, é hábito de mão e fraqueza de olhar. Fumo porque, ao fim de todos estes anos, ainda preciso de uma desculpa para poder manter a cabeça baixa. Fumo de olhos postos nas cinzas de onde acredito ter nascido e para onde sei estar condenado a regressar. É nelas que me sinto protegido e aconchegado.
Hoje, como ontem, ou em qualquer outro dia antecedente que tenha resistido à erosão do esquecimento, nada de especial se impõe arquivar. Nem vou perder tempo a tentar descrever um amontoado de banalidades com as quais as vossas vidas estarão, certamente, carregadas. No meio de todas elas sobram as minhas rotinas, as que ainda não sucumbiram por vergonha aos pés de um qualquer anúncio de televisão.
Acordo às 7:00 da manhã, sete dias por semana. Aos Sábados, Domingos e em feriados nacionais, os únicos que são dados na empresa, acordo à mesma hora mas obrigo-me a permanecer na cama, durante mais duas, invariavelmente de olhos abertos. Aproveito o gesto de desligar o despertador para pegar no maço de tabaco da mesa-de-cabeceira e acender o primeiro cigarro. Visto o roupão, calço as pantufas e vou à cozinha acender o esquentador e ligar a máquina do café. Etapa seguinte: Casa de banho. Acendo a luz mas não entro. Volto à cozinha e dirijo-me à janela para confirmar se os meteorologistas acertaram na previsão. Dou comida ao gato, apago o cigarro, tomo banho, faço a barba, visto-me e tomo o pequeno-almoço ouvindo as notícias na rádio. Ouço sempre as notícias na rádio.
Uma destas noites, como a de hoje, de olhos postos no cinzeiro, decidi iniciar um processo de mudança radical na minha vida. Compreendi que a doutrina rígida que teorizava a minha existência estava a tornar-me escravo de mim mesmo. Impunha-se uma manifestação de poder voltada para dentro... um acto de irreverência irreflectida, um devaneio exibicionista determinado a mostrar que ainda sou eu quem segura as rédeas. Na manhã seguinte inundei o lavatório com sangue ao tentar fazer a barba antes do banho. Perdi o comboio de sempre e acabei por ter um dia em que me senti invulgarmente desequilibrado e desconfortável.
Compreendi que são pequenas as coisas que nos pertencem realmente. A casa que habito não é minha, o carro que não tinha já vendi... e nem os dentes que ajudam os lábios a segurar o filtro do cigarro são todos meus em resultado de uma noite de pancadaria há mais de 10 anos atrás. Puta de vida!
O clarão da chama que alimenta mais um cigarro incendiou o rastilho da minha alma com um súbito desejo de pintar. Este tipo de provocação, anarca, com o único propósito de desequilibrar o que já tenho de instável, cuja fonte subversiva ainda não me foi possível identificar, não era ocorrência virgem ou anormal. Anormal, diria, estúpido mesmo, é pensar em pintar todas as noites e já terem passado mais de 6 anos desde que sujei a última tela. A minha última obra é do século passado, pensei.
A pensar em tintas, e nas razões que inventara, de mim para mim, para me poder manter enfiado no sofá, adormeci. Iniciei uma viagem por páginas de jornais sujas e usadas, já gastas de tão sorvida ter sido a informação que traziam. Caras, muitas caras mascarradas com tinta preta, todas elas, e de olhares vidrados e perdidos no nada.
Vozes em coro nasciam do meu cérebro gritando “Repressão, repressão...”, ou talvez, sem que o conseguisse perceber com clareza, invocassem: “Depressão”, num compasso marcado pelo que reconheço ser o enorme relógio de ponto que me dá o primeiro “Bom Dia” de todas as manhãs. Os ecos eram já mais fortes do que as palavras pelo que a “...pressão,... pressão” me parecia cada vez mais forte e insuportável. Apercebo-me que os rostos estão agora virados para mim, no momento em que subitamente sinto o meu corpo ser arrancado do sofá. Uma luz intensamente púrpura irrompe do tecto e ilumina toda a sala. Sem que perceba porquê torno-me espectador de mim mesmo. Sentado a um canto observo o meu corpo ser suspenso por uma rede invisível, como que içado pelo tronco por uma força que consente que os membros e a cabeça se sintam abandonados. Assisto horrorizado ao triste espectáculo de me ver tomado por uma consciência, que não a minha, que me comanda a existência como uma mão que controla uma marioneta ou um fantoche. A luz inicialmente púrpura alterou a coloração do meu corpo que recebe agora, como uma tela de projecção imagens e texto a uma velocidade tal que me é impossível verificar exactamente do que tratam. A única luz presente é a que resulta da infestação a que me vejo sujeito, todo o resto da sala deixou de existir. O corpo em convulsão continua a processar a descarga e a perder a forma. Um cheiro nauseabundo invade os meus sentidos. De repente tudo parece serenar, menos o odor que é cada vez mais denso e irrespirável. Os rostos desapareceram. Constato que o corpo, em avançado estado de putrefacção se começa a decompor em partes. O que resta de um braço cai, enquanto que a parte inferior de uma das pernas se encontra apenas segura por cartilagens do joelho. A cabeça...
Acordo sobressaltado... sacudindo os dedos queimados pela ponta do cigarro.
Corro para a casa de banho e abro a torneira... deixo a água gelada de inverno escorrer-me sobre a mão.
Sinto o alívio...!
Dirijo-me para a cama onde permaneço bem acordado até o despertador dar a ordem para que me faça ao dia. Mais um... que não tem por que ser considerado novo.
Cigarro, roupão, pantufas, cozinha, esquentador, máquina do café, luz da casa de banho, cozinha, janela, comida ao gato, apagar cigarro, banho, barba, vestir, pequeno-almoço... ouvindo as notícias da rádio.
Encho um copo com água e dirijo-me ao armário da casa de banho.
Abro a gaveta de cima, como todos os dias, e retiro um da embalagem.
De volta à cozinha tomo o Prozac, arrumo o copo e faço-me à estrada que a vida não está para grandes merdas.