sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

No outro lado do muro

ou, "A outra face"


Não creio que saibas quem sou...

Sou aquele tipo estranho com quem te cruzaste hoje no metro... O dono dos olhos de morte que te trespassaram a alma. Aquele que num breve relance de olhar violou o que de mais íntimo possuis... Ou serei o charmoso que almoçou sentado a teu lado?... Sim, eu! Sei que foi comigo que sonhaste na terça-feira... Sei o quanto me queres conhecer, como anseias pelo meu toque... como estremeces com o meu sorriso. É meu o rosto que os teus olhos vêem quando se fecham tomados impulsos de prazer.

Sou o teu vizinho do lado, o que passeia o cão fazendo jogging e que por timidez desvia o olhar quando tu passas... ou serei o vizinho de cima, aquele que nunca viste... Que nunca viste, mas que todos os dias ouves cantarolar no duche... e que por isso existe, para ti.

Sou o condutor, também parado na fila de trânsito, cujo carro nunca reconheces porque todos os dias muda de cor, em quem sempre reparas nunca sabendo bem porquê. Ora porque grito ao telemóvel, ora porque buzino sem razão aparente... aquele que às vezes te parece adormecido, ou o outro que todos os dias te olha de tanto te querer engatar.

Sou eu quem troca as tuas cartas do correio, quem assina o teu cheque de ordenado... sou o primeiro amor da tua vida, sou aquele que será um dia enterrado a teu lado...


Mas diz-me: E tu?... Quem és tu afinal??!


Sou aquele que um dia se apaixonou por ti, e que no fim nada ganhou com isso. Sou aquele que disseste não ser capaz de aguentar a pressão e que por isso ultrajaste em frente de toda a empresa. Sou aquele que odeia ter que olhar para ti e que mesmo assim todos os dias diz que te ama. Sou o porco da mesa ao lado que fuma enquanto almoças... sou o mendigo que na rua te estende aquela mão que te enoja. Sou o mudo actor de novela que só dobrado pela tua voz recebe ordem para falar. Sou aquele que te acha patética, mas que se deslumbra de cada vez que te vê passar.

Sou a face oculta no outro lado do espelho, a que conhece cada detalhe da tua aborrecida rotina de todas as manhãs.
Sou alegre, astuto, cínico, bondoso, de esquerda e de direita... sou eu quem todos os dias te blasfema, mas que sabe não ter forças para conseguir viver sem ti. Sou aquele que queria viver sozinho, longe deste teu mundo, deste antigo paraíso que tornaste em local demasiado hostil para se viver.

Sou a luz que te guia e a multidão que te esconde. Sou tudo e não sou nada. Alimento-me do brilho dos teus dias, monopolizo-te, à noite, em solidão.


E tu?... Diz-me... quem és tu afinal??!


Eu sei quem sou, sou o outro... o que habita no outro lado do muro e que sobrevive condenado a levar para casa os resquícios da tua maldade, da tua falsidade, da tua hipocrisia.
Sou aquele que te julga já conhecer, mas que todos os dias consegues surpreender ao levar ainda mais abaixo os limites. Sou quem assustas e interrogas, quem persegues e acorrentas. Sou o psicopata solitário, o pai de família bonacheirão, o electricista, o bancário e o executivo solteirão. Sou a tua gargalhada à mesa com os amigos, a anedota jocosa com propósito de achincalhar.

Sou eu quem passa férias a teu lado, apesar de ser de ti que quero descansar. Sou eu quem se arrasta para festas e bailes, e a quem pisas fingindo dançar.
Sou aquele que ainda hoje guarda as cartas que escreveste, o mesmo que jurou um dia haver de te matar.


Serei a tua réstia de esperança,
A sombra negra no teu último olhar,
Será minha a voz que ouvirás no escuro,
Vinda directamente do outro lado do muro,
E que no fim de tudo te irá perguntar:

“E tu... quem julgas tu que és afinal???”

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